(Sístole & Diástole) ou (Atrás dos olhos das meninas sérias)

Mais importante que a palavra é a textura - até mesmo porque a palavra (quase) nunca presta.

sábado, novembro 11, 2006

uma chave do barraco novo:

www.as-setechaves.blogspot.com

segunda-feira, outubro 09, 2006

(de tanto bater meu coração parou) ou (fim)

e a delicadeza cada vez mais torpe, num de seus constantes acessos de histeria, no mesmo dia em que no meio-fio virou o pé de pássaro e quebrou o espelho com um sopro, desembainhou uma enorme flor afiada e a cravou contra seu peito de neblina. a flor de cisma demorada ia espinho por espinho rasgando a matéria sutil, esgarçando aos poucos a nuvem do peito da delicadeza que guardava em si um pequeno corpo, do tamanho de um punho fechado em batidas de sístole e diástole incansáveis. a flor continuava então penetrando as fissuras da matéria que era agora infinitamente mais densa, mais árdua, difícil, pouquíssimo delicada. como poderia uma nuvem guardar dentro de si tamanha grosseria? era uma contradição indigna, como alguém dizer do castigo de deus pelo fato de ser ateu! e foi aí que a delicadeza pareceu perder de vez o juízo [mas ela mesma de uma lucidez tamanha!], e carregando nas mãos a flor e o coração, atirou-os contra a correnteza que vinha do choro escaldante de guadalupe. delicadeza após livrar-se de seu próprio centro, mesmo sobrevivente não suportou por muito tempo a condição ex-cêntrica, e o que já era um prenúncio --- aconteceu:



o crime [necessário] para consigo mesma,

fechando de vez os olhos das meninas sérias.

quarta-feira, outubro 04, 2006

das coisas mesmas.

asteei uma bandeira de palavras no castelo de areia úmida
ele todo feito à mão
moldado por dedos finos,
o cuidado de esculpir a torre
que alcance a lua
e aos pés da violência espumante
das ondas.
fatalmente destrutível, transitório
[qual planta sem raíz]
o castelo nômade de firmeza relativa
parede frágil
do reino dos estrangeiros
da estirpe dos herdeiros
dos homens sem direção
sem a segurança do cimento
a geometria do tijolo
a base sólida da terra
seca.
asteei uma bandeira de silêncios no castelo de areia úmida
construído no caminho
por onde passa
o contra-senso da curva do vento
que sopra frio
mas tão frio
que dá vontade
de ser corpo morto
embaixo da terra
[qual raíz sem planta]
protegido do sopro da vida
que não cansa.
asteei uma bandeira branca no caminho
da fria ventania,
e esqueci os casacos
lá---
[dentro do último castelo destruído.]

quinta-feira, setembro 14, 2006

" "

i) primeiro ela veio
com a mudez
carregando nas mãos
um pássaro
caído do ninho -
desagregado.

ii) n'outro dia foi a vez
da sombra
que na terra
não podia ser pisada
por ninguém
mas na água do mar
naturalmente
se desfêz.

iii) depois veio-me com rosas
presas aos cabelos
com os espinhos
afiados
derradeiros
o corte
de matéria orgânica
bem na nuca.

iv) a menina trapaceava
trouxe uma vela
acesa
pra ninguém
e orava e entoava
um salmo
pro escuro infinito sem
deus.

v) atrás dos olhos
onde era coração
como uma
sala de cinema sem
público
um filme noir
exibido
pras cadeiras
vazias.

vi) o tipo da semente
plantada no solo
fértil
é segredo -
o que
não vestiu a roupa
apertada
da palavra
[é sagrado].

vii) e
da semente
nasceu um gêiser
um
pequeno vulcão
de água -
a água
queimando a terra

viii) a água
que explodiu
e
não se recolheu
depois de
derramada.

ix) liquefeita
abriu as mãos
e o pássaro
abriu as asas.

quarta-feira, setembro 06, 2006

oráculo.

LavourArcaica

“... e embora caído numa sanha de possesso vi que meu irmão, assombrado pelo impacto do meu vento, cobria o rosto com as mãos, era impossível adivinhar que ríctus lhe trincava o tijolo requeimado da cara, que faísca de pedra lhe partia quem sabe os olhos, estava claro que ele tateava à procura de um bordão, buscava com certeza a terra sólida e dura, eu podia até escutar seus gemidos gritando por socorro, mas vendo-lhe a postura profundamente súbita e quieta (era o meu pai) me ocorreu também que era talvez num exercício de paciência que ele se recolhia, consultando no escuro o texto dos mais velhos, a página nobre e ancestral, a palma chamando à calma, mas na corrente do meu transe já não contava a sua dor misturada ao respeito pela letra dos antigos, eu tinha que gritar em furor que a minha loucura era mais sábia do que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!), e que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva, e o que valia era o meu e só o meu ponto de vista, e que era um requinte de saciados testar a virtude da paciência com a fome de terceiros, e dizer tudo isso num acesso verbal, espasmódico, obsessivo, virando a mesa dos sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, tirando não obstante o nível, atento ao prumo, erguendo um outro equilíbrio, e pondo força, subindo sempre em altura, retesando sobretudo meus músculos clandestinos, redescobrindo sem demora em mim todo o animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que um sebo oleoso cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas voarem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias o ventre mole deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho... ”

Raduan Nassar

quarta-feira, agosto 30, 2006

palavra-trovão joyceana

para gritar-trovejar 7 vezes:

"bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonner
ronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!"

segunda-feira, agosto 28, 2006

o homem que punhetava

--- é necessário também o gozo alienante que não vem acompanhado de prazer, sacia mesmo a tua necessidade, e guarda o membro melado na calça como quem limpa a boca com um guardanapo de papel depois do arroz com feijão diário. o corpo não pede muito, o corpo pede que pela boca se entre algo, pede a fricção de um outro sexo ou de uma mão, pede um canto qualquer pra ser horizontal e por algumas horas se desligar do mundo. o gozo alienante é uma risada bem dada na cara do prazer que é triste imediatamente um segundo após o gozo consciente. o prazer se entristece tão facilmente. porque ele sabe que bastam 5 arfadas e novamente você volta a si, como uma mola que te entrega e te recolhe, mas nunca se arrebenta. uma punheta bem dada pra se esquecer do castelo frágil de baralhos derrubados, de que infelizmente não basta enfiar o dedo no cu querendo que todo o resto de você também entre e fique lá pra sempre, esquecer que o "espírito" pede e finge muito mais que o corpo. os nossos quereres que dilaceram a razão são nossos idealismos, não um grito de suplício da nossa carne avermelhada. quanto a mim - eu, eu mesma e Irene - faz alguns dias que não penso mais, só tremo feito uma corda que ondula e ondula e. acho que de tanto bater meu coração parou, de tanto esperar um encontro [não duvido que seja nos mesmos modos de um cristão que espera a redenção, a sua espera também era assim?] sentada sempre no mesmo banco, a paisagem mudou e só meu banco continua lá intacto e eu não reconheço mais nada. anacrônica nesse mundo mais rápido que o pensamento. por isso o desconforto com as palavras, quando as coisas que te revolvem e que por sua vez revolvem as coisas do mundo já revolvem outra coisa ainda mais revolvente e revolvida isso te escapa. mesmo com a ausência de pontuação eu não consigo alcançar. e todas essas filosofias que violentam e se acumulam nos bolsos das calças e enchem os travesseiros e querem te enrabar a qualquer custo sem te deixar gozar [nem alienada nem esclarecida] implorando assentimento, como se fossem o absoluto a verdade do mundo do universo, do caos ao cosmos, e são todas parcialidades migalhas concedidas pelo mundo que se dá de dó do homem que não tem nada nem a si mesmo, e a mentira relativa que oprime tanto quanto a verdade absoluta e a liberdade na necessidade o nada a náusea o uno o múltiplo o bem o justo o belo o transcendente o transcendental a ataraxia a lógica os argumentos as justificações a antinomia a essência a aparência a linguagem o sublime que é para poucos a revelação que é para poucos a contemplação que é para poucos a dança que porra de dança é essa? me passa logo essa cicuta, vai. um viva à máxima do desconheça-te a ti mesmo pra manter a sanidade, e queria mesmo muito ver suas mãos cheias de calos que não são nem nunca serão maiores que os calos do seu "espírito" que não te basta pra ser homem. [a deprimencia da nicotina e da cafeína, nessas tardes nubladas, me bastam como hoje].

domingo, agosto 27, 2006

samba-canción dodecafônico.

eu vou gritar o silêncio torpe,
eu vou sim
nessas orelhas tão surdas que são minhas também
eu vou porque algo me escapa
eu vou gritarrrrrrrrrrrrrrrr -dizer o quê?
falta matéria substância amorrrr

pra dizer -dizer o quê?

as tripas, coração. é só o que você tem.
as tripas que te confirmam na pista de dança
e se reviram etílicas dentro do corpo
clamando por mais cuidados
no entanto, o coração mais maltratado que as tripas!
oh, eu quero me desfazer das visceras


eu queria ser uma abstração
gostar mais das abstrações
e desmaterializar sem dó.

o conceito de queda não cai na pista

não se derruba na vida
não tem joelhos
nem sente dor.


laiá laiá laiá

[ad infinitum até sumir]

domingo, agosto 20, 2006

a gangorra.

da quel

ela me confessou no espelho.

---talvez voltar a falar flores inofensivas e esquecer o deserto guardado lá dentro da boca sem céu estrelado, de onde escapam grãos que grudam nos olhos e cortam a visão dos objetos do mundo. ela é tão pequena nessa vida, de hábitos tão gatunos e tão triste também. sem fé que só. tão só. tão tão de tão pouco e minúscula. irresponsável de beber cerveja no graal, tão meia-boca. cheia de meias-verdades. tão pela metade. e a metade dividida em metades pequeniníssimas. um dia ela escutou os conselhos de augusto e desde então acostumou-se à lama que a espera. o homem que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera. e não é que todos esses anos vem costurado com linha negra uma segunda pele, pele de defesas e asperezas de bicho-fera e arredio que mostra os dentes e esconde que esconde o rabo entre as pernas. em cada onibus que se entra, em cada roleta que se gira em cada banco que se senta em cada janela que a cabeça cansada se encosta em cada minuto de inação é se entregar ao quarto escuro que é só seu. acostumada com o lugar-comum que é a náusea disfarçada de dança. a doença que dança, só de pensar na cena ela sente vontade de chover e rir de tão nervosa, "oh meu deus mas que dialética monstruosa!" uma doença que dança uma valsa [nos braços de qual cura?]. "mas que sistema miraculoso!" sente como se estivesse se afogando no Mar-Morto desde os 50 anos a.C.

sexta-feira, agosto 18, 2006

ORVALHO.

E eu deitado contigo, tu, no lixo,
uma lua lamacenta
atirou-nos com a resposta,

separamo-nos aos bocados
e voltamos a esmigalhar-nos juntos:

O Senhor partiu o pão,
o pão partiu o Senhor.

Paul Celan

quinta-feira, agosto 17, 2006

vai homem!
corre e goza do Espírito puro de Homem
enquanto o seu lobo não vem.

vai lobo!
abocanha o homem pela jugular e mostra a força
do Mundo das estepes selvagens e o desprezo pelo asseio
com os dentes sujos de sangue quente.

vai homem!
cultiva o espírito nobre, a medida
e espanta a fera indômita
da destruição violenta e irracional.

vai lobo!
que o instinto é certo e os caninos
mais afiados que o espelho lento da razão.

vai homem!
se eleva em pensamento, salta por cima da besta
e alcança o espaço eterno e imutável
livre dos prazeres vãos.

vai lobo!
sê livre, astuto, e dorme ao relento
na noite mais estrelada da vida
ofegante e saciado a tremer de cio.

vai homem!
domina a natureza e seja o outro
o sujeito de um objeto opaco,
aquele que dorme sempre de Luzes acesas.

vai lobo!
uiva pra lua e rosna pras lanternas
que distraem o medo covarde
do escuro abismal dentro do homem.

- corre! que as outras matizes - entre um e outro - já começam a acordar.
- corre! pois agora multiplicam-se a multiplicidade de espécies!

- espera! sê lobo, sê rato, peixe, dragão, homem, búfalo, pássaro e raposa.
- pára! que a personalidade é a própria orgia entre todas as espécies da arca de noé, a incluir o seu exímio guardião.

(a prova disso é começar este documento, homolupinamente, e terminar assim, feito uma hiena vestida de bufão.)

terça-feira, agosto 15, 2006

abrir a caixa e revelar todos os males do mundo. escrever todos os males do mundo e revelar a falta da caixa.


"Saber que não se escreve para o outro, saber que as coisas que vou escrever não me farão nunca amado por aquele que amo, saber que a escritura não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente aí onde você não está - é o começo da escritura. "

R. Barthes

luz e sombra e sorte.

o próximo pé que pisar na minha sombra será cortado
a próxima sombra que se aproximar da minha sorte será
crucificada: basta apagar todas as luzes.

então não haverá mais sombra minha,
nem pé que pisa na sombra.
não haverá mais sombra alheia,
nem o perigo de morte.

restando a sorte derradeira
[uma mulher sozinha e sem fé]
extraviada e se perdendo,
na escuridão sem norte.

domingo, agosto 13, 2006

em mãos.

se me ama não me ame
que entre dar
e receber
é onde mora o hiato
a mentira ou o segredo
do coração calado
calculista,
por isso agora não ---

já disse que me enfiaram
a faca e rodaram 7 vezes
desde então,
a sístole e diástole
mora na cabeça
e bombeia sangue frio
pr'o coração errado dos pés
que como um retirante pobre
bate e corre na estrada de terra
levantando a poeira,
a areia barata que derruba
num só ato
toda e qualquer
construção.

por isso agora não.

quinta-feira, agosto 10, 2006

intratável.

-hoje me disseram que eu sou um rio caldaloso, violento, gelado, profundo que corre pro...
-mar?
-não, pro nada.

quinta-feira, agosto 03, 2006

"Não humanizo bicho porque é ofensa. Eu é que me animalizo."

Da Clarice.

domingo, julho 30, 2006

outra diferença vetorial.

ninguém sabe. ninguém sabe mesmo disso. do cadáver insepulto [expressão gentilmente roubada de um cadáver sepultado] que sem futuro, crava os olhos nas costas e de volta para o passado deseja fazer dele o eterno : o tempo parado, imobilizado. futuro aniquilado; passado presentificado; e o presente mesmo, deslocado lá pr'um canto escuro, já que cadáveres não vivem [e viver é por definição, viver o tempo presente]. inversão do tempo como aquele dado pela nostalgia, como a mulher que vestida de azul, trazendo temperos e dois girassóis do mercado central, se senta no ônibus num daqueles bancos, que virados no sentido contrário, andando de costas, não a deixam ver para onde vai, a próxima estação, mas só a paisagem deixada pra trás, abandonada, que se distancia e cede o foco dos olhos pra um passado-paisagem mais imediato, que por sua vez dá lugar a um passado ainda mais imediato e por sua vez deixa entrar um passado fresco saído-do-forno, que por sua vez perde a vez; um acúmulo de imagens se distanciando em graus, o presente indecentemente tornando-se passado, fugidio sem cessar, sem disfarce - diante de seus olhos bem abertos, feito o girassol plantado no seu colo. ela não vê pra onde vai, mas só o que sendo, já não é mais, ela só olha para o que já foi. e como se perdesse aquilo que mal sabia ter ganho, como se o agora fosse só perda - como se só escapasse -ela sente a vertigem da violência do tempo que lhe entrega e arranca dos seus braços, no mesmo instante, uma coisa que nem consegue ver qual é, de tão rápido. ela só se sente plena naquele passado que congelado na memória, ninguém!, nem mesmo o tempo que corre bradando lá fora, pode lhe arrancar; e somente na memória consegue ver com nitidez esse pacote que lhe foi entregue e arrancado quase simultaneamente [ou de um quase nada sucessivo]. a memória do passado é seu eterno. a morada do eterno é a sua memória, a memória da moça.
nos bancos normais, andando de frente, vislumbra-se o destino, o próximo ponto, vendo a rua que se deve entrar, o sinal lá na frente fechado, o carro que corta o ônibus e o porquê da buzina escandalosa que assusta os desavisados, sempre perdidos em algum lugar lá fora ou lá dentro. nesse banco onde se senta um menino qualquer trazendo no colo uma pasta qualquer, ele vê de antemão o futuro e [chegando.o.o.o.o.] o tem tornando-se presente, e [chegando.o.o.o.o.o.] o tem tornando-se presente, e [chegando.o.o.o.o.] o tem tornando-se presente, sem tempo para o passado que vai sendo deixado atrás das rodas; mesmo com algum desvio no trajeto e mesmo que do futuro se engane - obras.homens trabalhando.ambulância.um morto e dois feridos.engarrafamentos.buracos.quebra-molas - ele aponta os olhos pra lá, e vê que o presente fugidio ganhará alguma coisa [coisa já pré-vista] futura que ocupará o seu lugar, e mais outra, e mais outra. a sensação de que algo sempre está por vir. à frente dos olhos a potência, e nos próprios olhos o ato, é o menino olhando. atrás dos olhos o menino não se detém, ele só olha pra fora, adiante.

Palavras em conserva para todas as coisas do mundo.

Na cidade do interior, onde brincavam nas praças com bola de meia, e nos comunicávamos por meias-palavras, e caminhávamos sem medo de carros no meio da estrada de terra batida, morava o menino. Que quando criança acordava todas as manhãs com um beijo de café na testa, um abraço de avental sujo de queijo e fubá, e olhares negros de feijão cozido na panela de pressão, todas as manhãs. O menino que ia brincar atrás da casa, no terreiro junto às galinhas, essas que ocupando seu tempo livre, logo lhe ocupariam o estômago, associação lembrada e esquecida, lembrada e esquecida, mas que não o impedia de mastigar sem culpa, e num movimento de dentes e língua, empurrar aquela massa homogênea goela abaix0. Atrás da casa passava a linha do trem, que agora ocupando a parte livre da linha do tempo de seu dia, logo lhe ocuparia as linhas dos cadernos que eram preenchidas por desenhos multicores e rabiscos à caneta preta. O menino deitado na linha do trem, enquanto enrolava a linha do seu papagaio à uma latinha velha de metal, tudo isso enquanto não ficava pronto o almoço, enquanto não vestia a roupa limpa em branco e azul-marinho da escola de primeiro grau. Até aí, ele mesmo lavava os próprios cabelos, enxugava o próprio corpo e escrevia suas próprias estórias de menino inventado, manobras de passarinhos e baterias para as luzes de vaga-lume. Quando chovia e enquanto trovejava, ele acendia a lamparina e em acessos de nervosia gritava e gritava alto pra não ouvir a colisão das nuvens, que segundo ele faziam terremoto, eram as placas tectônicas do céu. O menino afogava o sono em leituras e lia, e lia, e ia, indo com as palavras e se perdendo nos lugares e cheio das profecias, imaginava já o fim, largando-se aos próprios pensamentos, e quando via o livro já estava caído pelas suas mãos amolecidas nas pernas dobradas de índio. O menino afoito, afeito às perguntas sobre pessoas e coisas, "que há mais no mundo que podemos ver e pegar, senão coisas e pessoas? montanhas, água, cadeira, dedos, flor... eu, você, todos nós, o avô..." As categorias do mundo do menino - coisas e pessoas. Mas existiam também o que não podíamos ver, "as coisas invisíveis que faziam efeitos no corpo", e que segundo ele estavam entre as coisas e as pessoas, eram os sentimentos das pessoas sobre as coisas e sobre outras pessoas: "aquela vertigem, a raiva, o medo do trovão, o amor pelo pai, a mãe, o irmão". Mas pensou também nas palavras, que quando saem da boca não podemos pegar, e quando não são escritas, muito menos olhar. As palavras poderiam então ocupar a gaveta das coisas invisíveis e das coisas visíveis; era tudo uma questão de preferir falar, tagarelar como fazia sua mãe, cantar como fazia a tia, "ainda bem que não podemos ver! já basta ouvir tanta tagarelice, tanta sandice, tanta esquisitice!". Era tudo uma questão de preferir falar, o que mantinha a palavra invisível, ou escrever, que como mágica fazia o papel se encher. "Mais educadas as palavras escritas", pensou. "Não invadem silêncios, nem se impõem sem que a gente queira. Eu posso fechar os olhos, mas não desligar os meus ouvidos!", sorriu depois de pensar. E gostava de passar a mão de pele fina em busca da textura do papel quando todo ele era escrito em caneta preta, as palavras agora entravam na gaveta das coisas visíveis e tateáveis. [Repensou nas palavras faladas que lhe doíam mais que tudo, quando não queria falar e quando não queria mesmo ouvir! Ambas as vias eram violentas, retirar de si a palavra adormecida, bem aconchegada no canto da boca ou vagando dormente e indistinta entre os pensamentos, assim como a invasão de palavras alheias, desestruturando e acordando brutalmente suas meninas, exigindo reação, resposta imediata e associações corretas entre uma palavra e outra, entre as palavras e as coisas (...) Um dia mudaria seu nome e não contaria a ninguém! Quando o chamassem pelo nome antigo não teria obrigação alguma de responder. Assim como adoraria mudar o nome das coisas. "O objeto mesa agora se chama sozinhês." Poderia? Quem é proprietário? Quem é o zelador que mantém a palavra agarrada sempre à mesma coisa?]. Mais uma vez pensou, mais um desses lampejos que lhe davam quando na janela, ajoelhado na cama e apoiando o queixo sobre as mãos; pensou então que as palavras poderiam entrar numa dessas gavetas que estão entre as coisas e as pessoas, já que as pessoas dizem das coisas por palavras; a palavra era uma ponte entre as coisas e as pessoas. Mas não era um sentimento como a raiva, o prazer ou a dor. "Mas como? palavras são coisas visíveis, coisas invisíveis e ao mesmo tempo estão entre as próprias coisas e as pessoas, tal como sentimentos?" Podem estar também entre pessoas e pessoas, quando essas falam das coisas do mundo ou das coisas pessoais, "assim, só pelas palavras alguém saberá da dor que eu sinto, já que a minha dor, ninguém vê". Sem resolver a querela, pensou também numa palavra que como os sentimentos ["essas coisas invisíveis que faziam efeito no corpo"], lhe causava um tremor, uma palpitação, um segundo de frêmito como quando o trem passa ligeiro rasgando o silêncio e tremendo a terra em que se assenta a pequena casa. A palavra ______ lhe causava uma espécie de tremor de terra, e ele aliviado, sorria depois que ela passava feito um trem bala; sentindo-se despenteado sem estar, ajeitou os cabelos negros com a ponta dos dedos de menino. Pior ainda agora, que as palavras estavam na gaveta das coisas invisíveis, das coisas visíveis, das coisas que estão entre as coisas e as pessoas ["que espécie de coisas eram essas, afinal?"], e ainda na gaveta das coisas que faziam efeitos no corpo ["palavra-sentimento? palavra com efeito corpóreo?"]. Sentiu necessidade imensa de arrumar as gavetas, tal como fazia todos os anos, quando jogava montes de papel no lixo, e encontrava objetos perdidos, e se deliciava com os brinquedos e memórias acenando lá do fundo escuro, escurecido pelo tempo que passava sempre implacável, conduzindo seus interesses e desinteresses. Seria então a última tentativa em acomodar as palavras nas suas valiosas gavetas. Palavras dizem das coisas, das pessoas, e das relações das pessoas com as coisas, e das pessoas com as pessoas, e da pessoa sozinha com a pessoa, e das coisas com as coisas. Palavras dizem delas mesmas. Delas mesmas? "Sim, como agora". E exausto com as palavras que pareciam querer ser ponte de tudo, pareciam querer engolir o mundo, invadir cada canto escuro e mínimo das coisas, ao invés de fascínio e devoção, ele sentiu raiva, uma revolta com esse império que se manifesta quando se escreve, quando se fala, quando se pensa! Até essa revolta era por meio de palavras, até o insulto, o ato de praguejar, maldizer as palavras era por meio de palavras! Pensou na gramática, nos plurais, nos singulares, nos compostos, derivados, pensou no dicionário e naquele amontoado de palavras em ordem alfabética; abriu na palavra "palavra" e a definição pareceu-lhe inofensiva, pobre, pouco drástica. Fechou o dicionário e sentindo-se oprimido, perseguido, palavra, palavrão, palavrório, palavreado, palavroso, palavrada. E nesse turbilhão de palavras-pensamento, palavras-sentimento, palavras-escritas, palavras-faladas, palavras-anti-palavras, ele adormeceu escondendo a cabeça entre os joelhos magros [joelho: que era uma palavra, uma coisa - mas não uma coisa independente! era uma coisa que só era quando fazia parte das pessoas. que espécie de coisas eram essas?]. Passaram-se algumas horas e despertou com pingos de chuva molhando a cama, respingando a testa, esfriando os pés. Despertou mais calmo e afastou os pensamentos que insistiam, que pareciam bater com força à porta de sua cabeça, arrombar as janelas do torpor de menino recém-acordado. Levantou da cama, calçou os chinelos e silencioso viu que era noite; foi então até a cozinha, um copo d'água e pensativo, pensava em nada e nesse modo de não-pensar [que pode ser representado por aqueles chuviscos numa televisão quando não sintonizada], afogou os dedos no saco enorme de arroz e até o cotovelo, lá ficou por algum tempo. A água, o arroz, apenas duas dentre as tantas coisas nesse mundo de coisas. D'um cômodo próximo à cozinha, um som corria suave e alcançava sem violência seus ouvidos frágeis de menino. Suspirou de sono e quase novamente adormecido, estremeceu por não saber explicar, enpalavrar, embalar com as tantas palavras que sabia, a sensação que lhe provocava a música daquele bandoneón - uma milonga! - docemente tocada pelo seu avô. E sorrindo, debruçado nos joelhos, era o menino enternecido e alegrado com a ponte quebrada que era a não-palavra entre a pessoinha que era, e "aquela espécie de coisa que era a música. Mas que espécie de coisa é essa? que parece vibrar e espraiar por entre as outras tantas coisas e ---"

terça-feira, julho 25, 2006

pestilências de uma me-ni-ni-nha-zinha

me orgulho por não hesitar diante da porta
por só sair depois de entrar
e cantar mares
de tristeza e alegria
enquanto cuspo os peixes
depois de correr os riscos
da travessia do rio

você tem dedos
e existe
enquanto essas teclas te obedecem:
o justificar é mera ocasião do querer,
a ilusão do absoluto com a gana de alguns
dedos relativos.

você e Le goût du néant
finita, limitada,
cordeiro em pele de lobo
querendo serpentear
e engolir o próprio rabo.
pra totalizar o que?

a cretinice!

egocide-se e oniausente-se
por hoje e só.

22:22, 11:11, 4:44, tanto faz.

módulo armadura de jornal: propriedade térmica, para que não perca mais calor e o frio não invada impedindo a circulação sanguínea, congelando a pujança da velocidade do líquido vermelho. que mesmo na frieza alheia, a lei da termodinamica não me alcance e não me faça perder calor pra um corpo/ambiente/palavras de baixa temperatura.
módulo coração de marfim: é preciso matar uma manada de elefantes, um-a-um, com lanças de cristal e veneno de criança molestada. é preciso matar uma manada de elefantes pra se ter um coração maciço e coeso. é preciso pegar os elefantes pelos chifres e lutar na terra úmida pelo choro dos amantes, se sujar de lama na morada suja do desamor, das cabeças guilhotinadas pelo carrasco sem rosto. é preciso se furar, se arranhar na rua de ladrinhos com pedrinhas de brilhantes, daquelas bem pontiagudas e cortantes, feito o amor que passa se arrastando e se doendo, ferindo as mãos nos espinhos das rosas do bosque que se chama, que se chama solidão. é preciso se doer até a última célula viciada, um rital sacrossanto de sacrifício na madrugada fria e silenciosa. o coração de marfim exige calos na alma [se il y a] e rugas no espírito [idem]. o anel que tu me deste era vidro e se quebrou dentro dos dedos. sair correndo como quem busca um tesouro e se enganar dando de cara e corpo com uma porta transparente, agora estraçalhada, aos caquinhos ---E AS CICATRIZES. é um processo cumulativo, estamos interessados em acumulação de fracassos. em colecionar ruínas, cabeças cortadas e corações viciados em punções e nesses pormenores todos. pra se ter um coração de marfim foi preciso que morresse uma manada de elefantes, ir pra guerra, voltar pra casa e retornar à guerra por várias estações. sair ileso é estado proibido. entregar-se inteiro e recolher-se aos pedaços é condição primeira. é preciso matar uma manada de elefantes pra amar sem amadorismos. pra se preservar do embuste, e suportar a partida dos que passam como quem procura algo e não encontra. La recherche sem fim que não repousa nem sacia --- como me esquecer de que a estrela era cadente e esperar a permanência? como me enganar com âncoras que eram simplesmente de papel, fáceis de se desmanchar na água salgada do mar, que é a mesma água que se prende nos olhos e se rende, escorrendo pela perda? mas meu coração é de marfim e por ele eu matei uma manada de elefantes, manãna és otro día e meus calcanhares delicados, manchados de lodo precisam de cuidados e preparos para o próximo tropeço ou descompasso. eu que desconheço a sincronia.
"E acabava assim, de repente, ainda que não fosse absolutamente perfeito, nem redondo, chovera demais nos ultimos dias e havia tantos sapos pelos quintais semi-abandonados, os charcos, os poços, as minhocas retorcidas nas lamas, os plurais e a língua singular apertando tão violenta o dente contra o lábio que talvez escorresse um filete de sangue maduro sobre o branco da camisa, mas antes disso, sem efeitos, secamente, acabava assim, era uma pena, todos sentimos muitíssimo, mas que se há de fazer se acaba mesmo assim?"
módulo silêncio: como quem olha nos olhos de um búfalo.

sexta-feira, julho 07, 2006

pausa

quinta-feira, junho 29, 2006

Eros, vento.


"uma imensa aleluia perdida num silêncio sem fim"

Ceci n'est pas un blog. C'est ma chambre.

Certas palavras

Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:
definem
partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

(Drummond.)

quarta-feira, junho 28, 2006

ceci n'est pas un poème.

se eu enlouquecer, fujo com o circo ou toco violino no metrô de paris.
enlouquecerei deliberadamente.
[a cada dia percebo que meu coração mora nos pés.]

(...)

ontem plantei uma gérbera, extirpei um câncer
dei de comer às esperanças
(na palma das mãos)
e suscitei um problema pra minha coleção.
hoje eu sou prosaica feito uma cumadre
sem afilhado
sem marido vivo ou falecido
tola, banal e sem asas
numa fotografia fora de foco.
ingênua:
com um mundo dentro de outro mundo
em que não há a possiblidade de outros mundos possíveis.
portanto estou indo ralo abaixo no meu próprio ralo
em processo autofágico.
mas amanhã,
ah! amanhã, eu aprendo a lição
e serei então um espelho inteiro e plano
sem distorções
(com sentido e referência).
sem arestas ---
sem o fundo torpe dessa mesma música de anos,
sem os gritos e ruídos dessa indeterminação atonal.

sábado, junho 17, 2006

numa casa vazia sem número e sem rima.

e a lua cheia se esvazia
furada pelo espinho da flor,
o mesmo que fere a _______.


e a noite se mantém neutra
naquele mesmo estado em que não sabemos
se um copo está metade cheio,
ou metade vazio.

quinta-feira, junho 15, 2006

Tereza era. Com uma velha máquina fotográfica, andava por todas as ruas, ruelas e alamedas em busca de imagens de sapatos pendurados pelos cadarços nos fios elétricos da cidade.
Elza seria. Fazia apostas com a repetição e com o acaso: se aquela mosca entrar de novo pela janela, jamais me casarei. se dentro de 3 minutos um moço de casaco azul não passar por mim, entrarei para o convento. se uma porta bater na hora do almoço, faço regime.
Manoel fazia. Todo final de semana ia à rodoviária e sentava-se no terceiro banco da terceira fila da plataforma C, carregando consigo uma viola que nunca era tocada, juntamente com um pacote que era aberto e: olhado como quem garante, e novamente fechado como que assente.
Dinah esteve. Andava sempre de salto-alto e meia-fina nas ruas de paralelepípedos, gostava de viver fortes emoções, e de ser socorrida por estranhos que demonstravam preocupação excessiva com os seus joelhos e a sua meia rasgada no meio das pernas finíssimas de saracura.
Alberto estava. Fazia a digestão do almoço dando 5 voltas no quarteirão de casa, acompanhado do vizinho que só aguentava 3 e ficava esperando no ponto de ônibus ao lado dos estudantes. Fazia a digestão do jantar dando voltas na praça próxima de casa, assoviando sempre o Bolero de Ravel e jogando alpiste às pombas e rolinhas.
José é. Cego, mas insistia em dizer da feiúra das pessoas e da falta de gosto em combinar as cores e texturas. Casado com Telma, surda de nascença e consequentemente muda. O casal se comunicava através de Clóvis, mediador contratado, que sabia braille, linguagem de sinais e Esperanto.
Sônia era-aí. Sofria de insônia e passava madrugadas inteiras costurando e descosturando retalhos numa colcha que só ficaria pronta quando mudasse de nome e se tornasse Neuza.
Clara não era. Ela que sonhava com viagens de navio intercontinentais e viagens de avião interestaduais nada fazia, não era agente nem paciente, professora nem estudante, patroa nem proletária. Clara acaba de receber uma carta sem remetente, com recortes de jornal que diziam ser ela um "néant, uma qualquerzinha, tão inútil e desnecessária quanto uma fábula sem moral."

quarta-feira, junho 14, 2006

a valsa dos rebeldes.


Em Viena há dez mulheres belas.
Há um ombro onde a Morte vem chorar.
Há um átrio com novecentas janelas.
Há uma árvore onde morrem as pombas,
quando já não conseguem voar…

Há um pedaço arrancado à manhã
suspenso na Galeria Gelada…
Ay… ay ay ay
Aceita esta valsa, esta valsa, esta valsa,
apesar da boca amordaçada.

Ah, eu quero, quero, quero ver-te
numa cadeira, lendo um jornal sem cor…
Numa gruta na ponta de um lírio,
num atalho onde não foi o amor…

Numa cama onde a Lua suou,
num grito de areia e pegadas…
Ay… ay ay ay
Aceita esta valsa, esta valsa, esta valsa,
cinge-a pela cintura quebrada…

Esta valsa, esta valsa, esta valsa, esta valsa,
com o seu hálito de brandy e Morte,
arrastando a cauda no mar…

Há uma sala de concerto em Viena,
onde a tua boca mil vezes cantou…
Há um bar onde os jovens se calam
porque o blues à Morte os condenou…

Ah, mas quem ousa escalar o teu retrato
com a coroa de lágrimas que acabou de tecer?
Ay… ay ay ay
Aceita esta valsa, esta valsa, esta valsa,
há tantos anos que ela anda a morrer…

Há um sótão onde brincam as crianças,
breve lá nos amaremos, tem de ser…
num sonho emoldurado por lanternas húngaras,
na neblina doce de um entardecer…

E verei que à tua tristeza acorrentaste
o teu rebanho e os teus lírios de neve…
Ay… ay ay ay
Aceita esta valsa, esta valsa, esta valsa,
com um “não te esquecerei, sabes?”, breve.

E dançarei contigo em Viena
e hei-de ir disfarçado de rio,
um jacinto selvagem no ombro,
e minha boca, lenta, bebendo
nas tuas coxas o orvalho frio.

E sepultarei a alma num velho livro
entre o musgo, lembras-te?, e as fotografias…
e à cheia da tua beleza lançarei
o meu violino barato e a cruz
onde me crucifico todos os dias…

E dançando haverás de levar-me
aos lagos que te brotam dos pulsos…
Meu amor, meu amor,
aceita esta valsa, esta valsa, esta valsa…
É tua agora. E é tudo.

Tradução de "Take this Waltz" - Leonard Cohen
[todos os dias, em doses homéricas]

sábado, junho 10, 2006

Vibrato!

tocar como se toca um amante
dispor os ombros e as mãos
ao contato sensível.
com cuidado friccionar o arco sobre as cordas
explorar a música entre as pausas e notas,
a agudez como um grito
certo
que desperta o ouvido surdo.
o timbre que eu esperava
[do meu VALENTÍN.]

Nox et solitudo plenae sunt diabolo.

ela bebe do suco de uva que se pretende vinho e mastiga da hóstia que se pretende cristo. e apontando o dedo indicador (molhado de) na cara pasma de deus, aquele órfão de pais não-nascidos: e da carne se fez o verbo. E DA CARNE SE FEZ O VERBO! - grita arrancando partes de nuvens brancas e despedaçando por entre os dedos (molhados de) aqueles flocos brancos de idealidades. é que não há verbo antes da carne, nem mesmo nuvens antes de se dar com a cara no chão de espinhos, ou se dar com a cara na frente de um espelho inteiro e se ver quebrado, encubismado(sic.) como uma figura de picasso. as nuvem e os céus são a posteriori, e equilibram-se no nada que também comporta fogo e inferno, é a força aguda da crença que supera a força cética da gravidade, e assim flutuam no ar. amarrados um na borda do outro, fui outro dia visitar os céus, d'onde pude estender os braços e com uma tocha roubar um pouco de fogo do inferno, incendiando indelicada as asas de seda guardadas nos armários dos anjos que agora tropeçam nas madrugadas dos bairros sujos e negros "em busca de uma dose violenta de qualquer coisa". anjos caídos na perfídia, agora porteiros das casas-de-luz-vermelha, absortos comedores de papoulas.
ela pura pseudo-diáfana impregnada de mel
transformando carne em verbo,
lê o corpo e estupra o logos,
fode com as palavras
e minuciosamente explora
a hermenêutica do corpo
em cada anjo (de)cadente feito estrela.
(ela inocente, eu juro, inocente!)
enquanto isso, em cada livro que se abre, saltam as feras e os lobos e o que ela quer é entrar pela orelha e apartir daí numa viagem insólita se abrigar no TODO das entranhas ainda não comido pelas traças, costurar-se com um fio narrativo, ter tempo para um romance. do maleiro empoeirado do pai, hoje um lautreamónt gritou e corri pra socorrer, compadecida cheia de segundas intenções. a velha caridade interessada. ah! que você muda de assunto todo o tempo e insiste em irracionalismos, pequenas parcelas do irreal que você toma por real, esses cacos da imaginação que não compõem o mínimo conteúdo inteligível e o átomo ambulante que é a experiência de estar entregue somente a si mesma.
- mas é que eu só acredito no que não vejo! de céu e inferno minha visão está cheia, se vc quer voltar no assunto interior. quer dizer, anterior!
-você que é um átomo pensante que tende ao mais puro nada - do pó viemos e ao pó retornaremos com nossos grandes narizes famintos e decrépitos ansiando ciências cheirosas ou alcalóides puríssimos!
você: nadificando-se no costume de não impor seu mundo que significa pés descalços, cacos de vidro afiados e pequenas caixas de cartas velhas. se ainda se chamasse sofia! como esperar a sorte e exigir bonanças de um nome que revolve paixões e pecados como a ira?
- enquanto isso o Nada nadifica e produz ventos frios que balançam as cortinas de papel-
- e o absurdo abre a sua boca enorme, nos engolindo banguela com o rosto de nossos recém-nascidos (com hálito de vida&leite) e avós (com hálito de morte&formol) -

1,2,3 de Oliveira 4.

hoje, amanhã e a vida toda: enquanto uns querem conquistar o mundo, você se impõe o dever da inutilidade pública e da tragédia privada, se vangloriando por simplesmente conseguir vencer o sono na batalha dessa noite de círculo vicioso sem os lindos objetos dos seus vícios.
(nessa noite de blues & narcose recheada de fantasmas.)

terça-feira, junho 06, 2006

neurose pride.

as cenas mais importantes da sua vida eram apagadas da memória à medida em que sorria-lhes mas chorava-se --- mentia porque rangia os dentes todo o tempo, sentia o gosto da vergonha na sua boca fechada, lá dentro como em um esconderijo. e quando abria, cospia da(r)dos ferinos com maestria, onde o acaso ditava as regras: ou o interlocutor levaria na testa, ou pegaria no ar e lançaria de volta, ou o dado cairia no número 3 e então sairíam satisfeitos e reconciliados em um raríssimo silêncio de cumplicidade. seu castigo então - pela comunicação sôfrega e atravessada, herdada do pai que ironicamente era um comunicólogo - era a perda da memória ["É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas esqueci, sempre esqueci.”] diretamente proporcional à sua falta de confiança no mundo, e o tratamento de choque que merecem os medrosos, com suas ambições grandes e gordas, mas que não ousam atravessar a rua e disfarçam o fato com uma mis-en-scène interminável no meio-fio. o tratamento mais pesado que a doença, a cura mais maldosa que o sintoma, a anestesia mais longa que a cicatriz feita com pontos à mão, quase de cruz. tratamento obrigatório-compulsório indicado para o problema de: pensar A-dizer B-entenderem C.
tratamento desumano para desintoxicação de metáforas, interditos e entrelinhas.

segunda-feira, maio 29, 2006


" Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda”. "
caio f. abreu

sexta-feira, maio 26, 2006

Ah Debbie! Irene és morta!

Prefiro as gargantas profundas,
uma língua que roça outra língua
no emaranhado das palavras úmidas.
sons,
ruídos,
os estalados e os timbres dos segredos.
As salivas faladas – Ah! Aqueles bem dizeres...
O gozo no verbo
que escorre suado no canto da boca
em fricção com o outro e com a sintaxe do corpo.
Uma gargalhada demoníaca,
um sorriso gozado
que se mete e intromete
no colo intocado de cada útero minuto de prazer.
A romper o hímem do mundo
invadir os orifícios escuros-recônditos-indizíveis
até o fundo do osso
das dobras
e curvas das letras
o orgasmo soletrando minha imaginação de fogo,
assim como a grafia
da minha porno-grafia
de criança molestada.


maíra & mariana,
paraláxicas até o infinito possível.

quarta-feira, maio 24, 2006

pouco se entende embaixo d'água --- e tudo isso foi dito num mergulho. não entendam, por gentileza.

quisera não ter ouvido nada, e simplesmente continuado a nadar, ir e voltar, de uma margem à outra da piscina; se não tivesse ouvido, também não gritaria até arrebentar a garganta, eu que não sabia que daí de fora não se houvem os afogados, submergidos no fundo da água, da sala, da alma [tanto faz]. quisera ter visto mas não enxergado, e assim continuado a nadar, com os olhos vermelhosabertos desfocando traços, embaçando as formas sem delimitar o entorno-contorno que definem corpos, dispõem modos. melhor teria sido se não fosse o corte, quem-me-dera ter continuado a nadar sem o incômodo da fenda aberta, ardida, nas mãos que em forma de concha ensejam um nado não-sincronizado. [o nado não-sincronizado, sempre]. quisera não ter olhado as horas, e mantido a vida molhada, já que embaixo dágua o tempo não passa, não há o tempo que seca tornando árido [em descompasso com as intenções] e feio. quisera não ter feito do pulmão cinzas, despedaçado e sem fôlego, pra poder fingir de morto boiando abraçando os joelhos feito feto, surdo-mudo-anômico. quisera não ter saído ao vento, mas ter-me feito soluto no solvente universal, sem dissolução total --- transmutada em água-viva [que queima, machuca e se inocenta (porque simplesmente dança)].

domingo, maio 21, 2006

não me procures ali

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho
Pedra, semente, sal
Passos da vida.
Procura-me ali.
Viva.

Hilda Hilst

terça-feira, maio 09, 2006

Ma réplique!

Toma a minha réplica - nesse mundo de desdizeres, pudores, negligências e silêncios. é que eu não silencio mais. e então de bom grado respondo as cartas, os recados, as mensagens engarrafadas jogadas ao mar, e danço imaginariamente o crime ou a "tragicidade" dos tangos que me são ofertados. e sorrio também, um sorriso tímido que transparece as minhas meninices de "pra sempre" quando as palavras quedam.

[e a sintonia, antes percebida pela vontade comum da arte da marcenaria, escondida em mim o tempo todo - feito riso/graça]. como se eu folheasse um livro desconhecido aleatoriamente e mesmo assim o sentido não se perdesse nas páginas saltadas e na rapidez de todo aquele fluxo de pensamento. já que o sentido é a gente quem cria e injeta nas coisas, que esse seja intravenoso. frio era do tempo e da cerveja, calor era o da brasa e só do verbo. e foi quando o sentido deixou de significar 'alguma espécie de nexo/senso' e saltou pra ponta da língua - sensibilia. o toque, o tato. o sentido elementar do paladar/olfato. sem o desespero que se inflama e precipita, feito madeira que se molda com cuidado, a potência aos poucos vai se transformando em ato.

"que seja doce."

quinta-feira, abril 27, 2006

o útero é o limite

há os que estão pra sair,
e os que querem voltar.
os que estão pra sair
são filhos dos que querem voltar.
competem na infantilidade,
e compartilham uma diferença
meramente vetorial.

terça-feira, abril 25, 2006

vida de gato.

"Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás. "

quarta-feira, abril 19, 2006

(...) que sempre me dava a mão para atravessar a rua até a outra margem, sempre me teve por frágil como um enfeite que se quebra no mínimo toque, sempre tomou toda palidez como a ausência de veemência e nervura --- como as virgens ideais e
pálidas-lânguidas-cálidas desse seu romantismo barato. e eu mesma tinha vontade de colocar sua boca aberta no meio-fio e com uma só pisada na cabeça quebrar todos os dentes da sua boca. para depois oferecer-lhe todas as delícias cremosas desse mundo, já que mastigar a categoria dos sólidos se tornaria naturalmente impossível. vê, não desprezo o fato de que poderei lhe servir, mas também não desprezo a condição do meu querer ou o possível cuspe na sopa que levo quente até você. e continuando então a desfigurar-lhe o rosto com as unhas todas, cravando cortes com os dedos, para depois com os mesmos dedos, afogados nos cabelos, dizer que não necessito das suas costelas nem de nascer delas. daí você pedirá perdão por freud e renunciará a todas as vaginas desse mundo se insistir que esta é um pênis castrado, privação.
e então negará adão.
7 vezes ao pé da macieira,
com as calças arriadas e em genuflexão.
e só então, meu homem, lhe darei meu coração:
com todos os nervos possíveis e
as veias tomadas de amor vermelho.
[paixão]
todo ódio eu guardarei em caixas transparentes,
para que seja visto e lembrado
até o fim.
[à redenção]